fonte: Folha de SP
A infectologista Eduarda Ribeiro Prestes, 30, enfrentou as decisões mais angustiantes de sua vida profissional durante a pandemia.
Era maio de 2020 e, com a falta de leitos de UTI para pacientes de Covid-19 que assolava Santarém, no interior do Pará, Eduarda sentia a responsabilidade de decidir o futuro dos pacientes pesar sobre ela e os colegas.
Eduarda era uma das poucas especialistas em equipes compostas em sua maioria por médicos recém-formados. Atuava num hospital de campanha e na Unidade de Pronto Atendimento, ambos superlotados. No primeiro, dois ventiladores atendiam os 50 leitos disponíveis.
A escassez de leitos e equipamentos impunha escolhas difíceis: num domingo, teve de decidir quem ocuparia o único leito de UTI disponível: a avó de um amigo ou uma grávida de sete meses do primeiro filho? A avó estava com 85 anos e em estado crítico; a futura mãe tinha 21 e um outro ser a caminho. Ganhou quem parecia ter mais chances de sobreviver.
Mãe e filho faleceram naquele mesmo dia, a avó dias depois. “Tive que tomar muitas decisões sozinha, e a sensação era que, se qualquer uma desse errado, seria nossa culpa”, lembra a médica. Ali, como na maioria dos hospitais do país, não havia um comitê de ética hospitalar para ancorar os profissionais de saúde na hora de decisões de vida e morte.
Não por falta de recomendação. Os comitês para “prestar aconselhamento sobre problemas éticos em situações clínicas” são preconizados na Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, adotada pela Unesco em 2005.
No Brasil, o CFM (Conselho Federal de Medicina) aconselha a criação desde 2015. Na pandemia, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) reforçaram a necessidade.
Faltam dados nos mais de 6.000 hospitais brasileiros, mas sabe-se que são escassos e praticamente se restringem a grandes instituições. Não há regulamentação sobre formato e atuação.
“Não é uma cultura brasileira, o Brasil nunca se preocupou muito com essa questão da ética da prática hospitalar”, afirma Elda Bussinger, presidente da SBB.
Nos EUA, segundo estudo da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, os comitês estão presentes em 90% dos hospitais. O surgimento remete à década de 1960, quando a escassez de equipamentos para hemodiálise estimulou debates sobre quais pacientes com doença renal deveriam receber o tratamento, relata José Roberto Goldim, professor de bioética da UFRGS e um dos fundadores do comitê de bioética no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Novos dilemas éticos movimentaram o debate público e consolidaram os comitês no país. O mais conhecido foi o de Karen Ann Quinlan, que entrou em estado vegetativo após uma combinação de dieta radical e ingestão de álcool e um sedativo. O caso foi parar nos tribunais: seus pais defendiam o desligamento do respirador; seus médicos afirmavam que a paciente não atendia aos critérios de morte cerebral que justificariam a medida.
A corte de New Jersey delegou a decisão ao comitê de ética do hospital, que teve que ser criado para decidir o futuro da paciente. Karen foi retirada da respiração artificial, mas sobreviveu e ficou mais nove anos em coma, até morrer de falência respiratória.
No Brasil, o HC de Porto Alegre foi pioneiro na criação, com comitê ativo desde 1993. No pico da crise sanitária, fazia reuniões semanais.
“Os dilemas éticos dentro dos hospitais foram exacerbados pela falta de recursos e o ineditismo da situação. Não fomos treinados para tomar decisões numa pandemia, e vimos um sofrimento crônico dos profissionais na linha de frente”, diz Ricardo Kuchenbecker, médico e pesquisador do HCPA.
Goldim, que também é coordenador do Serviço Assistencial de Bioética do hospital, diz que o grupo foi requisitado mais de 700 vezes em 2020. As questões mais difíceis envolviam distribuição de leitos e uso de recursos muito escassos como a ECMO (Membrana de Oxigenação Extra Corpórea). O grupo também deliberou em conjunto que a idade não poderia ser critério exclusivo para decisões sobre leitos.
Decisões tomadas pelos comitês são baseadas em referencial teórico da bioética e demais especialidades presentes. Visam respaldar os profissionais na tomada de decisões e para que possam fazer escolhas pautadas por critérios mais objetivos, especialmente em situações de estresse.
“Os profissionais de UTI, por exemplo, tiveram uma exposição a um número de mortes que muitos combatentes em guerra não têm”, afirma Goldim.
Na falta dos comitês, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, a Associação Brasileira de Medicina de Emergência, a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e a Academia Nacional de Cuidados Paliativos publicaram, em maio de 2020, um protocolo para tentar auxiliar a tomada de decisões em cenários de escassez de recursos durante a pandemia.
O documento apresenta como uma das justificativas retirar o peso dessas decisões dos profissionais de saúde: “Tomar decisões de grande peso moral de maneira subjetiva e sem apoio institucional ou de recomendações formais pode ser emocionalmente debilitante”, diz o texto.
Dois projetos de lei que poderiam regulamentar a criação dos órgãos estão parados desde 2012: o PL 3497/2004, que propõe a criação da Comissão Nacional de Bioética, e o PL 6032/2005, sobre o Conselho Nacional de Bioética. Para os especialistas, essas entidades poderiam estimular a criação e orientar a atuação dos comitês locais pelo país.
Segundo Bussinger, uma das propostas da atual gestão da SBB é fazer levantamento sobre a existência dos atuais comitês e mobilizar profissionais e sociedade para aprovação do PL que criaria o Conselho Nacional. “Agora sabemos mais do que nunca da necessidade dos comitês de bioética.”